segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Hora dos Ruminantes


Aos alunos do 3º ano do Ensino Médio, disponibilizo aqui um ensaio dos profs. André Luiz Alves Caldas Amóra e Tatiana Alves Soares Caldas sobre a obra de José J. Veiga. É óbvio que a análise aqui não substitui a leitura do livro, que é imperescindível para a realização das provas de Literatura e para a formação cultural de cada um. Aliás, ler essa análise sem conhecer em detalhes o livro torna-se um exercício bastante difícil para entendê-la. Bom, posteriormente tentarei aqui realizar alguns comentários acerca da obra. Mas somente após as provas. Ah, o professor Flávio Kothe foi meu professor durante o curso de pós-graduação de Língua e Literatura na UEG, pessoa das mais competentes na teoria literária. O material é denso, mas bastante essencial.
Bom estudo!



A HORA DOS RUMINANTES
UM ROMANCE METAFÓRICO

hora dos ruminantes, romance de José J. Veiga, conta a história de um lugarejo pacato - Manarairema - que é bruscamente submetido à opressão de homens desconhecidos e misteriosos, que se instalam próximos ao lugar.

Alegórico em alguns aspectos e possuindo elementos do realismo fantástico, o romance desenvolve-se através de símbolos, sendo estes um recurso estilístico para denunciar o contexto histórico-político ditatorial. Procuramos, neste trabalho, explorar alguns desses recursos de âmbito semântico e lexical, através das imagens apresentadas.

Segundo Todorov (1970), o fantástico caracteriza-se por uma atitude de hesitação diante de um acontecimento que não apresenta explicações naturais, ocupando, portanto, o tempo da incerteza. Assim que uma resposta é apresentada, sai-se do fantástico e envereda-se pelo estranho ou pelo maravilhoso.

A hora dos ruminantes, portanto, apresenta uma narrativa fantástica no plano da história. Podemos perceber este aspecto fantástico, por exemplo, na invasão dos cachorros e na dos bois. Na primeira, Manarairema entra em pânico, quando centenas de cães tomam conta da cidade, invadindo casas e acuando os habitantes. Em seguida, sem nenhuma explicação, os cachorros deixam o pacato lugar. Porém, o pior ainda estava por vir: uma outra invasão, a dos bois, deixaria a cidade totalmente encurralada. Os ruminantes tirariam a tranqüilidade de Manarairema, colocando os moradores como prisioneiros em suas próprias casas e desaparecendo misteriosamente, como os cães, deixando a cidade em paz. Pode-se dizer que este romance tende ao maravilhoso, já que não há explicações para o aparecimento nem para o sumiço dos invasores - os cães e os bois.

Saindo do plano da história, A hora dos ruminantes propõe ainda uma reflexão alegórica, pois J. J. Veiga utiliza-se de símbolos que retratam a censura imposta no Brasil nos tempos ditatoriais. Flávio Kothe, em seu estudo sobre a alegoria, define-a a partir de sua relação com a metáfora:

[A alegoria é uma] representação concreta de uma idéia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa. Subjacente ao nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de semelhança. (KOTHE, 1986: 90)

Dessa forma, portanto, verifica-se a ocorrência simultânea do fantástico e da alegoria, categorias que normalmente excluem uma à outra. Acreditamos, contudo, que não seja esse o caso, uma vez que a alegoria e o fantástico se dão em esferas diferentes n'A hora dos ruminantes. Enquanto o fantástico se estabelece no enunciado, a alegoria é percebida somente na reflexão por parte do leitor.

Selma Calasans Rodrigues, em seu estudo sobre o fantástico, analisa o modo pouco usual com que o tema é explorado pelo escritor brasileiro:

J. J. Veiga (...) situa seus personagens num espaço rural, mas que acaba por ser um espaço alegórico que quer falar sempre da relação entre opressor e oprimido ou da possibilidade de viver a liberdade apenas no sonho (...). Seu fantástico, que começa leve, se adensa, avizinhando-se do absurdo (...) e, a par das reflexões de caráter existencial, parece ser a alegoria da sociedade brasileira dos anos de ditadura e opressão. (RODRIGUES, 1988: 65-66)




No campo semântico-lexical, muitas são as imagens que remetem ao momento de ditadura. A divisão do romance em partes - correspondentes às três invasões - que se vão intensificando metaforiza a situação que foge ao controle da população. A primeira parte, intitulada A chegada, refere-se à invasão realizada pelos homens da tapera. Significativos são os dois parágrafos iniciais da narrativa, que parecem sintetizar o que virá em seguida:

A noite chegava cedo em Manarairema. Mal o sol se afundava atrás da serra - quase que de repente, como caindo - já era hora de acender candeeiros, de recolher bezerros, de se enrolar em xales. A friagem até então continuada nos remansos do rio, em fundos de grotas, em porões escuros, ia se espalhando, entrando nas casas, cachorro de nariz suado farejando.

Manarairema, ao cair da noite - anúncios, prenúncios, bulícios. Trazidos pelo vento que bate pique nas esquinas, aqueles infalíveis latidos, choros de criança com dor de ouvido, com medo escuro. Palpites de sapos em conferência, grilos afiando ferros, morcegos costurando a esmo, estendendo panos pretos, enfeitando o largo para alguma festa soturna. Manarairema vai sofrer a noite. (VEIGA, 2001: 9)

A passagem acima prenuncia o que virá a seguir. A imagem da noite, geralmente tida como negativa, assume contornos ainda mais assustadores pelos vocábulos utilizados para caracterizá-la - friagem, grotas, porões escuros - , idéia intensificada pela informação de que o cair da noite trará sofrimento. Digno de destaque é o início do segundo parágrafo do texto, associando os prenúncios e bulícios à noite. A passagem apresenta ainda referências a um medo escuro, além de panos pretos e morcegos, atribuindo um ar ainda mais macabro à noite de Manarairema, com tudo remetendo ao sombrio, às trevas, com toda a simbologia nelas contida. Ao dizer “Manarairema vai sofrer a noite”, o narrador identifica a noite como agente causador do sofrimento do lugar. A ausência da crase impossibilita que se veja a noite como um adjunto adverbial de tempo, reiterando a idéia de que ela seria a verdadeira expiação do pacato lugarejo.

A narrativa transcorre sem que se saiba de imediato o que de tão aterrador aconteceria no lugar. Entretanto, literalmente da noite para o dia, tudo parece se transformar:

No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. (VEIGA, 2001: 12)

A imagem do acampamento surge com tal rapidez que causa assombro nos habitantes do lugar. Aos poucos, a curiosidade transforma-se em especulação:

(...) aqueles lá acamparam em linha, duas fileiras, medidas, deixando uma espécie de largo no meio. (...) enquanto os homens andavam ativos carregando volumes, abrindo volumes, se consultando, sem tomar conhecimento da cidade ali perto. Seriam engenheiros? Mineradores? Gente do governo? (VEIGA, 2001: 13)

O romance finda com uma imagem muito expressiva: um relógio de igreja batendo horas, ainda desregulado. Apesar de ainda lerdo, seus ponteiros vão sendo pouco a pouco acertados, em mais uma das metáforas que perpassam o texto. Bons e maus momentos retornam, fazendo um balanço do acontecido e passando a limpo o tempo de Manarairema.

Um comentário: